Uma mulher extraordinária

No dia 8 de Dezembro de 1894 – dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Portugal – nasce Flor Bela, na extinta Rua do Angerino, em Vila Viçosa. Antónia da Conceição Lobo, sua mãe, era uma camponesa, criada de servir na casa de João Maria Espanca.

Visto que João Maria e a esposa Mariana não conseguiam ter filhos, pois Mariana era estéril, ele começou a relacionar-se com Antónia, com a conivência da esposa, sendo Antónia uma mulher bastante bonita e vistosa. Fruto desta ligação, nasceram Florbela e Apeles. Ambos foram registados com o sobrenome da mãe, Lobo, e baptizados como filhos de pai incógnito.

Embora tivesse uma relação próxima com o pai, Florbela foi apenas reconhecida como sua filha legítima, passados quase vinte anos após a sua morte. No entanto, a infância passada na casa paterna, num ambiente influenciado pela arte, pela música, pela literatura e, inevitavelmente, pela política e contexto sócio-político, com livre e fácil acesso à educação, a peças de gosto requintado e a convívios com a família real – o rei D. Carlos e a rainha D. Amélia eram clientes assíduos do pai – tudo isto acabou por influenciar inequivocamente o seu futuro.

Os primeiros anos

Florbela ingressou, de forma precoce, na escola primária de Vila Viçosa, em 1899, onde permaneceu até 1908. Foi nessa época que evidenciou a sua paixão pela escrita, tendo começado a assinar os seus textos como Flor d’Alma da Conceição Espanca.

A sua primeira composição poética conhecida, intitulada “A vida e a morte”, data de 11 de Novembro de 1903. Florbela tinha apenas 8 anos e juntou à assinatura do poema a indicação da sua idade, num gesto de merecido orgulho pelo feito atingido.

Quatro anos depois, escreveu o seu primeiro conto, um conto dedicado à mãe, cujo título não deixa qualquer margem para dúvidas: “Mamã!”. Pouco tempo depois, esta
viria a falecer no Hospital da Misericórdia de Vila Viçosa, com apenas 29 anos, vítima de um grave distúrbio psiquiátrico. Apesar da perda, Florbela não perdeu o rumo no percurso escolar e continuou a frequentar o Liceu André de Gouveia, em Évora, até 1912.

Sendo uma das primeiras mulheres em Portugal a frequentar o liceu, foi durante este período que aprofundou os seus conhecimentos literários, tendo requisitado, na Biblioteca Pública de Évora, obras de referência dos grandes escritores como Honoré Balzac, Alexandre Dumas, Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, entre tantos outros.

De menina a mulher

Com 18 anos, Florbela assumiu o namoro com o companheiro de escola Alberto Moutinho, com quem casou em 1913, passando o casal a viver no Redondo, também no Alentejo.

Nestes primeiros anos de casada, Florbela iniciou a criação de um caderno que reunia a sua jovem obra poética, a que deu o nome de Trocando Olhares. Neste livro, dedicado ao marido, selecionou e juntou as suas produções poéticas, sem ordem cronológica, mas que lhe serviram, mais tarde, de ponto de partida para futuras publicações.

Este foi, possivelmente, o período poético mais produtivo da sua vida. Entre 1915 e 1917, escreveu 34 cartas, 144 poemas, 1 dedicatória em verso e 3 contos. Apenas quatro desses poemas viriam a ser publicados nesta época. No entanto, os restantes poemas e os contos mantiveram-se inéditos até 1986, momento em que é, finalmente, editada a compilação Obras Completas, da autoria de Rui Guedes.

Em 1916, Florbela estreou-se como jornalista na “Modas & Bordados”, um suplemento do jornal “O Século”, e nos jornais eborenses “Notícias de Évora” e “A Voz Pública”. Regressada a Évora, em 1917, Florbela terminou o 11º ano do Curso Complementar de Letras e matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi uma das 14 mulheres entre os 347 alunos inscritos.

Na vida de Florbela não houve muitas alegrias e as rosas deixaram dolorosos espinhos. Em 1918, sofreu um aborto espontâneo, o qual a marcou profundamente, obrigando-a a passar algum tempo numa casa de repouso, em Olhão. Diz-se que foi nesse momento que começou a apresentar os primeiros sinais da mesma doença mental de que padecia a sua mãe.

Um ano mais tarde, publicou, finalmente, o seu primeiro livro, repleto de belos e ricos sonetos, com o título Livro de Mágoas, e uma tiragem de 200 exemplares, que esgotou rapidamente.

Entretanto, o casamento com Alberto atingiu um ponto crítico e, em 1920, ainda casada, Florbela interrompeu os estudos na faculdade e foi viver com António Guimarães, alferes da Guarda Nacional Republicana, seu recém-conhecido. Só no ano seguinte, finalmente divorciada de Alberto, casou em segundas núpcias com Guimarães, tendo-se mudado para a cidade do Porto. No entanto, a estadia no Norte não durou muito tempo e, em 1922, o casal mudou-se para Lisboa, onde Guimarães foi promovido a chefe de gabinete do Ministro do Exército.

A carreira de escritora continuava a dar os seus frutos e a 1 de Agosto desse ano a recém-fundada revista Seara Nova publicou o soneto de Florbela “Prince Charmant”, dedicado a Raul Proença. Em Janeiro de 1923 foi publicada a colectânea de sonetos Livro da Soror Saudade.

Porém, a vida pessoal de Florbela voltou a passar por momentos difíceis e a relação com Guimarães começou a deteriorar-se, tendo a própria confessado, em carta para o seu pai, que sofria de maus-tratos, infligidos por aquele. Florbela decide, então, sair de casa e começou a dar aulas particulares de português, para conseguir pagar as suas contas. Em 1925, é oficializado o seu segundo divórcio, um ano particularmente difícil para ela, pela perda da madrasta e madrinha, Mariana, que lhe deixou, no entanto, uma avultada herança. Já o pai se havia divorciado anos antes para casar com a criada Henriqueta de Almeida.

Ainda em 1925, Florbela voltou a casar, desta vez com o médico Mário Pereira Lage, conhecido de longa data e com quem já partilhava a vida amorosa. O enlace aconteceu em Matosinhos, onde o casal passou a residir.

A carreira literária continuou bastante produtiva e Florbela começou a colaborar com o jornal “Dom Nuno” de Vila Viçosa. Entre 1925 e 1927, enquanto procurava um editor para a sua nova colectânea Charneca em Flor, dedicava-se à preparação e à organização de um volume de contos, O Dominó Preto, o qual viria somente a ser publicado postumamente. Em paralelo, trabalhava ainda como tradutora, para duas editoras.

Um fim anunciado


A 6 de Junho de 1927 foi desferido o pior golpe da vida da poetisa: a morte do seu adorado irmão Apeles, em consequência de um trágico acidente de avião, nas águas do Rio Tejo. Este acontecimento foi devastador e irrecuperável para Florbela. Neste ponto, a sua saúde mental agravou-se irreversivelmente: a fragilidade causada pelos divórcios, a morte da madrinha e os dois abortos sofridos, deixaram a poetisa num caminho sem retorno.

Com mais um casamento a fracassar, Florbela escreveu o seu Diário do Último Ano, apenas publicado em 1981, sendo aquele o seu último ano de vida. E, embora estivesse numa profunda depressão, envolveu-se num romance breve com Luís Maria Cabral, médico e pianista de renome.

Em 1930, após o diagnóstico de um edema pulmonar, perdeu totalmente a vontade de viver. A sua chama apagou-se na madrugada do 36º aniversário, em Matosinhos, onde ficou sepultada até 1964.

No relatório oficial, a causa de morte indica um edema pulmonar, embora tenha ficado em suspenso uma suposição que envolve a sobredosagem por calmantes, mas a análise do acervo inédito que se encontra na posse da Casa Florbela Espanca aponta para alguns dados repletos de incongruências, nomeadamente no que diz respeito às datas e às últimas horas de vida de Florbela. Assim, não podemos assumir que o mistério esteja completamente desvendado, mas estamos certos de que a evolução deste estudo proporcionará, por fim, as respostas necessárias.

Consta também que a poetisa terá deixado uma carta com as suas últimas vontades, entre elas, o pedido para que fossem colocados no seu caixão os destroços do avião pilotado por Apeles.

Em 1964, foi transladada de Matosinhos para Vila Viçosa, repousando, finalmente, na terra que a viu nascer e crescer.

Foram 36 anos de uma vida repleta de controvérsias, dada a postura pouco convencional de Florbela, caracterizando-a como uma das primeiras feministas em Portugal.

Quanto à sua escrita irrepreensível, exímia no soneto, próxima de Camões e de Antero de Quental no sentimento, Florbela debruçou-se sobre temas intemporais e inerentes ao ser humano: a solidão, o amor, o erotismo, o sofrimento, o desencanto, a morte, a procura da felicidade e, por fim, a própria condição e inquietação da alma feminina.

Bilhete de Florbela Espanca

Desapareci, fui correr o mundo que é grande e onde ninguém se encontra. Diz à Henriqueta que lhe mando um abraço e que apesar de tudo sou bem amiga. Adeus, pae da minh’ alma. Se te causo desgosto, perdoa-me e crê sempre que te estimo infinitamente.

Tua Filha
Flôrbela

A VIDA E A MORTE

Largamente valorizada do ponto de vista académico e esquecida pelo exacerbado conservadorismo duma sociedade que não a entendeu, foi precursora de uma moderna poesia, que a tornou lendária. Tendo em conta o seu valor poético e a forma como soube defender os seus ideais, Florbela é um nome incontornável da cultura em Portugal. Lutou, até ao fim dos seus dias, pela sua poesia, batendo a todas as portas para conseguir levar a sua obra ao reconhecimento. Tarefa nada fácil para uma mulher, nesse tempo. Porém, a sua ousadia, irreverência e até atrevimento deram os seus frutos.

1894
8 Dezembro - Nasce Florbela na casa da Rua do Angerino, em Vila Viçosa.
1895
20 de Junho – Florbela é baptizada em Vila Viçosa, com o nome de Florbela Lobo.
1899
Outubro – Florbela, precocemente, frequenta a secção infantil da escola primária, na Rua de Cambaia.
1903
11 de Novembro – Florbela escreve a sua primeira poesia conhecida “A vida e a morte”.
1906
10 de Julho – Conclui o exame da instrução primária 2o grau, 5a classe com o Professor Romeu.
1908
Com a idade de 29 anos, morre em Vila Viçosa, no Hospital da Misericórdia, a mãe de Florbela, Antónia da Conceição Lobo.
1910
Julho - Florbela completa a 4a classe no Liceu André de Gouveia.
1912

Florbela namora oficialmente com Alberto Moutinho, que conhece desde 1904.
1915
10 de Maio – Florbela inicia a produção de um caderno com o nome “Trocando Olhares”, com duas quadras intituladas “No Minho” e datadas de 10 de Maio de 1915. É o livro onde passa a limpo e guarda todas as suas produções sem ordem cronológica e que dedica ao seu marido. Entra talvez no mais produtivo período poético da sua vida. Retoma o “Trocando Olhares”. Em um ano e meio (de 21 de Novembro de 1915 até 30 de Abril de 1917) escreve 144 poesias, 1 dedicatória em verso e 3 contos. Este documento engloba ainda os livros “O Livro d’Ele”, “A Minha Terra” e “O Meu Amor”. Somente quatro destas 145 poesias viriam a ser publicadas. As restantes, bem como os outros 3 contos, mantiveram-se inéditos até à edição das “Obras Completas” da autoria de Rui Guedes em 1986. Florbela Espanca escreveu ainda neste período 34 cartas.
1917
9 de Outubro – Florbela matricula-se na Faculdade de Direito de Lisboa.
1920
Janeiro – Florbela conhece António Guimarães.
1921
30 de Abril – Divórcio de Florbela e Alberto Moutinho.
29 junho – Realiza-se o segundo casamento civil com António Guimarães.
1922
4 de Julho – casamento de João Maria Espanca com Henriqueta das Dores de Almeida.
1923
Janeiro -É editado o “Livro de Soror Saudade” por Francisco Lage.
Em nova carta ao pai não datada, informa João Maria Espanca sobre os maus tratos físicos infligidos por António Guimarães.

1925
23 de Junho – É decretado o divórcio de Florbela e António Guimarães.
15 de Outubro – Realiza-se o terceiro casamento civil de Florbela, em comunhão de bens, com o Dr. Mário Pereira Lage.
1926
Florbela escreve ao irmão Apeles, solicitando ajuda para a resolução de um problema judicial de Mario Lage no Supremo Tribunal.
1927
6 de Junho – Morte do irmão Apeles Espanca.
1928
Florbela escreve a José Emidio Amaro referindo que deseja publicar na primavera o livro “Máscaras do Destino”.
17 de Junho – A relação com Mário Lage degrada-se rapidamente. Florbela descobre verdades do passado e do presente do marido.
Julho – Florbela apaixona-se por Luís Maria Cabral, médico e também grande pianista e concertista.
29 de Agosto – Mário Lage escreve a João Maria Espanca informando do grave estado de saúde de Florbela.
1929
9 de Maio – Florbela viaja para Évora via Lisboa.
Mário Lage escreve uma carta a João Maria Espanca, avisando o sogro que Florbela está em estado debilitado.
1930
11 de Janeiro – Florbela inicia o seu diário, que viria a publicar-se em 1981 como título “Diário do Último Ano”.
10 de Julho – Guido Battelli oferece-se para editar o seu livro “Charneca em Flor”.
Dia 6 de Dezembro –João Maria Espanca recebe um telegrama de Mário Lage.
Dia 7 – João Maria Espanca parte de Vila Viçosa para Elvas às 14h30m.
Dia 8 – João Maria Espanca chega a Matosinhos às 7.00 horas da manhã. Na versão oficial, Florbela Espanca acaba por falecer às 22.00 horas do dia 7 de Dezembro, na sua residência da Rua 1 de Dezembro em Matosinhos.
9 de Dezembro – Funeral de Florbela Espanca em Matosinhos.
1931
Janeiro – Publicação do livro “Charneca em Flor” por Guido Battelli.
Julho – São editados por Guido Battelli, igualmente em Coimbra, “Livro de Mágoas” e “Soror Saudade” (2a edição), “Juvenília”, “Cartas de Florbela Espanca a D. Júlia Alves e a Guido Battelli” e “Charneca em Flor” (2a edição), com 28 sonetos inéditos (Reliquiae).
1949
13 de Junho – Pelo facto de ser filha ilegítima, João Maria Espanca decide perfilhar Florbela.
18 de Junho – É inaugurado no Jardim Público de Évora um monumento a Florbela da autoria do escultor Diogo de Macedo.

1954
3 de Julho – Morte em Vila Viçosa de João Maria Espanca.
1964
O Grupo Amigos de Vila Viçosa procede à trasladação dos restos mortais de Florbela para Vila Viçosa.
1994
Exposição temporária comemorativa do centenário de Florbela Espanca, designada Florbela! Flor Bela!.
2014

É lançada uma petição pública, dirigida ao Município de Vila Viçosa, com o objetivo de apelar à constituição de uma Casa-Museu em homenagem à poetisa calipolense, na casa onde residiu durante a infância e adolescência, na antiga Rua da Corredoura. Pretendia-se com esta iniciativa, apelar ao poder político para a necessidade de preservação da memória florbeliana, através da constituição de uma unidade museológica que acolhesse bens públicos e privados relacionados com o universo florbeliano.
Este tema tinha vindo a ser sucessivamente adiado e graças à insistência de um grupo de cidadãos decidiu-se lançar esta iniciativa de modo a consciencializar. todos os interessados sobre esta matéria (calipolenses, estudiosos, investigadores, poetas e sociedade em geral), relativamente à necessidade de preservar esta memória que é de todos nós.
2019
No âmbito do Colóquio Internacional - 100 anos de Florbela Espanca, organizado pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e pelo Município de Vila Viçosa, o Museu-Biblioteca da Casa de Bragança preparou uma exposição dedicada à Poetisa, que foi inaugurada no dia 7 de Dezembro, no Paço Ducal de Vila Viçosa.
A exposição designada “Sonho que um verso meu tem a claridade para encher todo o Mundo”. Esta iniciativa contou com a colaboração de alguns colecionadores particulares e com o Grupo “Amigos de Vila Viçosa”, que disponibilizou alguns manuscritos e objetos pessoais da Poetisa. A exposição esteve patente até dia 12 de Janeiro de 2020.
2020
Os promotores do projeto CASA FLORBELA ESPANCA® adquirem a residência onde a Poetisa viveu, situada na Rua Florbela Espanca no 59 em Vila Viçosa. No mesmo período também vem adquirindo um espólio florbeliano original, composto por cartas manuscritas, postais, fotografias e objetos pessoais do uso quotidiano da poetisa, de João Maria e Apeles Espanca.
A consulta e análise desse acervo permitiu a inclusão de novos factos na biografia e irá contribuir nas pesquisas mais aprofundadas sobre a vida e obra de Florbela Espanca.
Este espaço vai servir para homenagear e valorizar o legado da Poetisa e permitir a sua fruição pública.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

AA. VV., Florbela! Flor Bela! : Exposição comemorativa do Centenário de Florbela Espanca,1894/1994, org. Biblioteca Florbela Espanca, Associação Portuguesa de Artistas, Vila Viçosa,Grupo Pró-Évora, Évora, 1994 (BA. 14756 V.)
AA. VV., Florbela Espanca, Rev. Alentejana, no 332, Dezembro, Casa do Alentejo, Lisboa,1964.
BESSA-LUIS, Agustina, Florbela Espanca – A Vida e a Obra, Col. A Obra e o Homem, ed.Arcádia, Lisboa, 1979
GUEDES, Rui Guedes, Acerca de Florbela, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1986
CASA FLORBELA ESPANCA®, Arquivo, Vila Viçosa 2020
Autoria – Franquiline Triet e Tiago Salgueiro