“Tua boca é um vulcão
Que me queima a ixistencia
São teus beijos que me matam,
Sôfro a morte com paciência”
Évora, 16-07-1912
“Ter um Pai! É ter na vida
Uma luz por entre escolhos;
É ter dois olhos no mundo
Que vêem plos nossos olhos!
Ter um Pai! Um coração
Que apenas amor encerra,
É ver Deus, no mundo vil,
É ter os céus cá na terra!
(…)
Ter um Pai! Os órfãozinhos
Não conhecem este amor!
Por mo fazer conhecer,
Bendito seja o Senhor!”
Excerto do poema “Ter um Pai!” de Florbela Espanca
João Maria Espanca João Maria Espanca nasceu a 1 de Fevereiro de 1866, na Orada, uma freguesia rural, pertencente ao concelho de Borba. Pouco se conhece acerca da sua infância e juventude. Contudo, sabe-se que foi, na idade adulta, uma figura popular em Vila Viçosa, talvez pela sua alma de artista e o seu carácter eclético,
qualidades que o tornaram no “homem dos sete ofícios”, como era visto aos olhos da população – João Maria Espanca comprava e vendia antiguidades, negociava com cabedais, desenhava, pintava e escrevia versos.
Enquanto antiquário, percorreu o Alentejo de uma ponta à outra, com o propósito de negociar peças de mobiliário, ouro, prata e porcelana chinesa, das quais era um grande apreciador. Conhecia como ninguém o mercado antiquário, sendo exigente e criterioso nas suas aquisições. Era, igualmente, respeitado em todo o país, recebendo com frequência as visitas ilustres do Rei D. Carlos de Bragança e da Rainha D. Amélia de Orleães, que a ele recorriam para se aconselharem em matéria de compras. Consta ainda que terá oferecido diversas peças de arte de carácter valioso à Corte Real e que terá comprado ao próprio Rei um serviço completo da Vista Alegre, pintado a ouro, datado de 1891, o qual deixou como herança à família.
Porém, foi a veia artística deste republicano convicto, embora simpatizante da monarquia, que fez dele uma influência de referência, não só no seio familiar, mas também junto dos seus contemporâneos.
Espanca foi um fotógrafo exímio e é graças a ele que chegou aos dias de hoje um detalhado registo fotográfico da vida de Florbela, desde a infância até aos primeiros anos de juventude, mostrando as suas vivências, num ambiente claramente influenciado pela arte, pela música, pela literatura e, inevitavelmente, pela política. Este mundo alimentou as primeiras referências da poetisa e permitiu o desenvolvimento da sua composição escrita.
Espanca deixou também memoráveis registos fotográficos dos piqueniques e das encenações humorísticas que organizava nos momentos de lazer entre amigos e a família, registos esses que se revelaram importantes na compreensão da história, dos eventos sociais e da evolução urbana de Vila Viçosa. A sua popularidade, transversal a toda a sociedade calipolense, tornou-o no fotógrafo de eleição de toda a região, no que dizia respeito aos retratos e à captação de fotos de teor mais artístico.
Da fotografia à imagem em movimento do cinema deu-se uma rápida transformação e, nesse âmbito, diz-se que João Maria Espanca foi o responsável pela introdução do cinema em Portugal, por ter criado um animatógrafo em Vila Viçosa, onde projectava e divulgava as suas imagens. De qualquer das formas, é inegável afirmar que este artista foi, sem sombra de dúvida, a influência primordial na vida dos dois filhos: Florbela e Apeles.
Ter um Pai!
Florbela Espanca carregou durante toda a vida a marca social de “filha de pai incógnito”. Sua mãe, Antónia da Conceição Lobo, servia na casa dos Espanca como criada e a informação que existe refere um acordo em gerar um filho do patrão, porque a esposa, Mariana Espanca, era estéril. Assim, a 8 de Dezembro de 1894, nasceu Florbela e, apesar de não ter sido oficialmente reconhecida como filha de João Maria, foi criada por este e pela madrasta, sua madrinha de baptismo, com uma educação exemplar, assumida em pleno por ambos. Três anos depois de nascer Florbela, nascia Apeles, segundo os mesmos termos, com uma única ressalva: o de ficar com a mãe biológica até aos cinco anos de idade, tendo sido encaminhado para a casa dos Espanca depois. Entretanto,
quando Florbela tinha 13 anos, morreu Antónia, cortando de vez o ténue laço materno.
Com Florbela já casada, a madrasta acabou por adoecer e perecer. Nessa época, João Maria vivia com a criada Henriqueta de Almeida, com quem viria a casar em segundas núpcias. Florbela foi amada por ambas as mulheres do pai, como se de uma filha legítima se tratasse e, com ambas, trocou correspondência de modo assíduo durante o tempo que passou fora da sua terra natal, tornando-as intermediárias na sua relação com o pai. Estas duas figuras femininas e maternais contribuíram, certamente, de modo relevante para a formação do carácter da poetisa.
Os relatos da época referem que existia entre ela e o pai uma relação próxima, repleta de uma admiração incondicional, com um tratamento de igual para igual. Diz-se que, uma única vez, pai e filha terão estado de relações cortadas, na sequência do segundo divórcio de Florbela, muito antes de sobre os dois se abater a maior tragédia de suas vidas: a perda prematura de Apeles, a qual choraram fortemente unidos.
Em 1949, João Maria Espanca, com a idade de 83 anos, perfilha finalmente Florbela, na Conservatória do Registo Civil de Vila Viçosa, abrindo caminho para a tão aguardada homenagem pública da poetisa, de que é exemplo o monumento existente no Jardim Público de Évora.
João Maria Espanca faleceu a 3 de Julho de 1954, em Vila Viçosa, e deixou todos os bens móveis e os direitos autorais das obras da filha à sua mulher Henriqueta.
Aguardamos a sua resposta, com elevada expectativa!
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
AA. VV., Florbela! Flor Bela! : Exposição comemorativa do Centenário de Florbela Espanca,1894/1994, org. Biblioteca Florbela Espanca, Associação Portuguesa de Artistas, Vila Viçosa,Grupo Pró-Évora, Évora, 1994 (BA. 14756 V.)
AA. VV., Florbela Espanca, Rev. Alentejana, no 332, Dezembro, Casa do Alentejo, Lisboa,1964.
BESSA-LUIS, Agustina, Florbela Espanca – A Vida e a Obra, Col. A Obra e o Homem, ed.Arcádia, Lisboa, 1979
GUEDES, Rui Guedes, Acerca de Florbela, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1986
CASA FLORBELA ESPANCA®, Arquivo, Vila Viçosa 2020
Autoria – Franquiline Triet e Tiago Salgueiro