Obras Completas de Florbela Espanca, 1985 - As Quadras D'Ele

[1]

Andam sonhos cor do mar
Nas minhas quadras, imersos,
Se queres comigo sonhar,
Canta baixinho os meus versos

[2]

Saudades e amarguras
Tenho eu todos os dias,
Não podem pois adejar
Em meus versos, alegrias.

Saudades e amarguras
Tenho eu todas as horas,
Quem noites só conheceu,
Não pode cantar auroras.

[3]

Se é um pecado sonhar
Tenho um pecado na vida,
Peço a Deus por tal pecado
A penitência merecida.

Quando o meu sonho morrer
(Que penitência tão dura!)
Vá encontrar em teu peito
Carinhosa sepultura.

[4]

Onde estás ó meu amor,
Que te não vejo apar’cer?
Para que quero eu os olhos
Se não servem pra te ver?

Que m’importa a luz suave
Dos olhos que o mundo tem?
Não posso ver os teus olhos
Não quero ver os de ninguém.

[5]

Tens um coração de pedra
Dentro dum peito de lama
Pois nem sabes distinguir
Quem te odeia ou quem te ama.

Por uma que te despreza,
Teu coração endoidece,
E a pobre que te quer bem
Só teus desprezos merece!

[6]

Desde que o meu bem partiu
Parecem outras as cousas;
Até as pedras de rua
Têm aspectos de lousas!

Quando por acaso as piso,
Perturba-me um tal mistério!...
Como se pisasse à noite
As pedras dum cemitério...

[7]

Teus olhos têm uma cor
Duma expressão tão divina,
Tão misteriosa, tão triste,
Como foi a minha sina.

É uma expressão de saudade
Vogando num mar incerto.
Parecem negros de longe,
Parecem azuis de perto.

Mas nem negros nem azuis
São teus olhos, meu amor,
Seriam da cor da mágoa
Se a mágoa tivesse cor!

[8]

Nem o perfume dos cravos,
Nem a cor das violetas,
Nem o brilho das estrelas,
Nem o sonhar dos poetas,

Pode igualar a beleza
Da primorosa flor,
Que abre na tua boca
O teu riso encantador.

[9]

Levanta os olhos do chão,
Olha de frente pra mim
Fingindo tanto desprezo,
Que podes ganhar assim?

Não andes tão distraído,
Contando as pedras da rua,
Não sei pra que finges tanto...
Tu és meu e eu sou tua...

Levanta os olhos do chão.
Que podes ganhar assim?
Se Deus nos fez um pro outro,
Para que foges de mim?!

[10]

Coveiros, sombrios, desgrenhados,
Fazei-me depressa a cova,
Quero enterrar minha dor
Quero enterrar-me assim nova.

Coveiros, só o corpo é novo,
Que há poucos anos nasceu;
Fazei-me depressa a cova
Que a minha alma morreu.

[11]

Amar a quem nos despreza
É sina que a gente tem;
Eu desprezo quem m’odeia
E adoro quem me quer bem.

[12]

Ai, tirem-me o coração
Que o tenho todo desfeito!
Cada pedaço um punhal
Que trago dentro do peito.

[13]

Eu quero viver contigo
Muito juntinhos os dois
O tempo que dura um beijo,
Embora eu morra depois.

[14]

Meu coração é ruína
Caindo todo a pedaços,
Oh, dai-lhe a hera piedosa
Bendita desses teus braços!

[15]

Quando fito o teu olhar
Tão frio e tão indiferente,
Fico a chorar um amor
Que o teu coração não sente.

[16]

O fado não é da terra,
O fado criou-o Deus,
O fado é andar doidinha
Perdida p’los teus.

[17]

Esmaguei meu coração
Para o triste te esquecer,
Mas ao sentir os teus passos,
Põe-se a bater... a bater...

[18]

Andam pombas assustadas
No teu olhar, adejando,
Mal sentem os meus olhos,
Batem as asas, voando.

[19]

Há sonhos que ao enterrar-se
Levam dentro do caixão,
Bocados da nossa alma,
Pedaços de coração!

Tiago Passão Salgueiro